Quando comer pode se caracterizar um transtorno ou problemática alimentar?

Quando comer pode se caracterizar um transtorno ou problemática alimentar?

Uma leitura psicanalítica da compulsão alimentar 

Por Michele Tapioca – CRP: 03/8375


 

A compulsão alimentar se caracteriza pela ingestão descontrolada de grande volume de comida, sem que o apetite esteja presente necessariamente. O ato de comer durante os episódios de compulsão, costuma acontecer solitariamente ou escondido, sendo comum os ataques noturnos à geladeira. A incorporação do alimento ocorre quase sem mastigar, até que seja alcançada uma sensação dita de plenitude, que aliás não se sustenta em um segundo tempo da cena. Sentimento de angústia, culpa e vergonha costumam vir à tona, sendo marcada uma grande divisão daqueles que sofrem dessa problemática alimentar.

Existe uma preocupação com o aumento expressivo de casos, em especial entre os jovens, de um comer transtornado – expressão usada para falar das problemáticas alimentares que não preenchem critérios diagnósticos de Transtorno Alimentar dos Manuais de Doenças Mentais psiquiátricos (DSM- Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders). Há que se levar em conta que vivenciamos uma mudança do laço social no mundo contemporâneo, novas formas de viver e de manifestações do sofrimento psíquico, onde a comida e o ato de comer tem ganhado grande destaque.

Somos atualmente empanturrados com a oferta de alimentos por todos os lados, seja nas redes sociais, nos programas e séries de TV ou nos aplicativos de comida de fácil acesso e que são levados à mão por onde vamos. Em contraposição, há um discurso social normativo que controla as práticas alimentares com o imperativo de comer saudável e de valorização de corpos magros, formando um ambiente socio-cultural produtor de ansiedade alimentar.

Entre os alimentos queridinhos e os vilões, ficamos com as apresentações FIT como a solução do problema alimentar, e na oferta de mais comida como solução, portanto. Isso somada à banalização das drogas reguladoras de apetite, parceiros das tabelas e calculadoras de calorias que vão determinar o quê e o quanto comer, ocasionando ainda mais desconexão entre os sujeitos e seus próprios corpos.

A alimentação tem um lugar especial na psicanálise desde Freud, pois a fome é tomada como necessidade primeira sobre a qual se apoiará o nascimento do desejo, satisfação e das formações psíquicas. A comida é o primeiro objeto que o indivíduo põe do mundo para dentro, através de um outro que o alimenta, de modo que o ato de comer (ou a sua recusa!) transpõe a fome propriamente dita e se transforma- a partir do contato com o outro- em desejo e em tramas psíquicas. O comportamento alimentar pode servir como uma, dentre outras tantas formas de apresentação de um mal-estar psíquico. A fome e sua saciedade são experiências fundantes das raízes inconscientes da relação com o outro, com o desejo e com o prazer.

O ato compulsivo de comer pode variar em sua frequência, ocorrendo em períodos determinados onde há uma grande carga de estresse emocional, ou se caracterizar como um ritual das refeições diárias. Episódios de compulsão alimentar podem se relacionar com uma exigência de cumprimento de dietas muito restritivas, que ocasionam sentimento de fracasso seguido de excesso de comida. Por se tratar de motivações inconscientes, está para além da consciência, logo, não depende da força de vontade ou do esforço à mais que lhe falta- repetidamente escutado por quem trava a luta com a comida e que tem sido grande produtor de sofrimento adicional.

É importante ressaltar que a compulsão alimentar em certos casos, cumpre uma função de mascarar uma reação depressiva diante de uma perda, real ou simbólica, que não foi elaborada. O sujeito que sofre se vê diante de um impulso incontrolável de recusar o objeto alimento, sem que as motivações lhes estejam claras- faço, mas não sei o porquê.  A angústia se apresenta associada a um empuxo de preenchimento imediato – sem adiamento- do vazio que se anuncia.

Trata-se da função que o alimento adquire para alguns de objeto-analgésico, análogo aos mecanismos de medicalização do sofrimento tão presente nos dias atuais. Há um impulso para a devoração do alimento no modo descontrolado, que em boa parte dos casos, se revela articulado a uma compensação na qual um objeto real – o alimento – vem ocupar o lugar de uma frustração subjetiva, emocional não simbolizada.

É por se tratar de uma manifestação do sofrimento psíquico que o sim-toma-comida, sintoma-comida, essa impossibilidade de recusar o alimento deve ser escutada como um sintoma do caso-a-caso. À Psicanálise interessa como que cada um se relaciona com a comida e o que o ato de comer revela da singularidade de cada sujeito.